28 de maio de 2020 Foto: CDC / Unsplash

Por Marcelo M. S. Lima

A Covid-19 pode provocar inúmeras alterações além do comprometimento respiratório. Há relatos de que a infecção pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2) pode causar problemas cardíacos, renais, alterações pressóricas, distúrbios de coagulação e prejuízos imunológicos, fazendo desta uma doença multissistêmica. O cérebro é um dos órgãos especialmente afetado pelo vírus. Complicações neurológicas têm sido reportadas em 36,4% dos pacientes, tendo ainda se mostrado mais comuns em 45,5% dos pacientes com quadros mais severos de infecção.

A ausência de olfato, documentada em uma parcela significativa de pacientes, é um sinal de alerta. O olfato é regulado pelo sistema nervoso central, a partir da ativação de células receptoras olfatórias presentes na cavidade nasal. Ao que tudo indica, o SARS-CoV-2 é capaz de usar essa ponte de entrada e assim invadir o sistema nervoso central, confundindo e alterando o processamento sensorial. Esse mecanismo de desregulação olfatória está longe de ser devidamente explicado, principalmente porque ela parece perdurar por semanas após o desaparecimento de outros sintomas típicos da infecção, como a febre e a falta de ar.

Especula-se que a gravidade do comprometimento respiratório poderia ser atribuída às lesões neuronais observadas nos centros de controle respiratório e cardíaco do cérebro localizados no tronco encefálico.

A descrição desse padrão lesivo sugere que o cérebro pode ser invadido pelo vírus não só por via olfatória, mas também através do nervo vago, que é constituído por milhares de prolongamentos de neurônios (axônios) que partem dos pulmões e se dirigem ao tronco encefálico. Este mesmo nervo também possui projeções axonais provenientes do trato gastrointestinal e que vão ao cérebro, indicando que o SARS-CoV-2 também poderia acessar o sistema nervoso central a partir do intestino.

Uma vez instalado no cérebro, o vírus parece ser capaz de produzir lesões multifocais pela deflagração de enorme neuroinflamação, induzida por uma tempestade de interleucinas, e com consequências desastrosas como a encefalopatia severa, isquemias, necrose e convulsões. Mas outro achado, inédito, e recentemente descrito em pacientes com Covid-19, é uma lesão neuronal por desmielinização. Quando a bainha de mielina (que  funciona como um isolante que protege os axônios) é destruída, há uma perda significativa da capacidade de comunicação entre os neurônios, prejudicando o sistema nervoso central. Outra constatação diz respeito aos casos de isquemias e mesmo de hemorragias cerebrais associados às infecções mais severas, sendo que a ocorrência de hipercoagulabilidade e o aumento do processo neuroinflamatório parecem compor esse pano de fundo para os acidentes vasculares cerebrais (AVCs).

Muito do que descobriremos acerca dessas consequências da Covid-19 para o cérebro ainda serão construídas mediante uma cuidadosa investigação dos pacientes recuperados, a semelhança do que já se identificou para o vírus da zika. Talvez seja possível antecipar uma maior gravidade neurológica para os idosos, que possuem menor reserva neuronal e, principalmente, para aqueles que já possuem doenças neurodegenerativas em curso, pois estas compartilham os mesmos gatilhos neuroinflamatórios.

 

Referências

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Sobre esse artigo

Marcelo M. S. Lima é professor associado do Departamento de Fisiologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Coordenador do Laboratório de Neurofisiologia da UFPR e pesquisador associado da Rede Nacional de Ciencia para Educacão (Rede CpE). Atua na busca de biomarcadores precoces para a doença de Parkinson.

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Publicado na Bori em 28/5/2020, 16:15 – Atualizado em 17/2/2021, 16:56