13 de junho de 2020 Foto: Roman Synkevych / Unsplash

Por Fernando do Amaral Nogueira

Um dos legados da atual crise é a chegada do Brasil à era das megadoações. Aqui, ela foi inaugurada com a doação do banco Itaú de mais de R$ 1,25 bilhão para o combate à Covid-19.

Levantamentos feitos pelo Monitor das Doações: Covid-19 mostram que, até abril de 2020, foram doados quase R$ 4 bilhões por empresas, fundações e filantropos. Só a doação do Itaú responde por 30% desse montante. Essa é a escala das megadoações de megadoadores como Bill Gates (Microsoft), Jeff Bezos (Amazon), Mark Zuckerberg (Facebook), Bernard Arnault (LVMH), a família Bettencourt (L’Oréal), entre poucos outros. No exterior, é comum que essas doações venham dos empresários; aqui, das empresas. Havendo agravamento de nossa crise, é possível que outras corporações sigam o exemplo do Itaú.

O que torna as megadoações diferentes? De início, a escala. No Brasil, o valor doado por pessoas físicas varia de R$ 240 (média geral) a R$ 600 (média doada pelo 1% mais rico da população, com renda mensal superior a R$ 30 mil). A megadoação do Itaú equivale à generosidade de cinco milhões de brasileiros, ou dois milhões de membros de nossa elite econômica em um ano. Além disso, as megadoações costumam vir acompanhadas de uma publicidade muito maior: é comum que sejam noticiadas de forma ampla e que caiam por um tempo na discussão de jornais, redes sociais e conversas cotidianas. Finalmente, essas doações dão enorme peso ao doador para influenciar o modo como o dinheiro será gasto.

Megadoações, caso não sejam bem conduzidas, podem criar megaproblemas, como tornar as organizações não governamentais (ONGs) muito dependentes de poucos doadores. É comum faltar transparência, com poucos detalhes sobre compromissos concretos, datas, organizações que vão receber apoios e se as doações estão ou não associadas a benefícios ou renúncias fiscais. Governança e accountability também não costumam ser publicizadas: quem toma as decisões – e como são tomadas? Toda doação traz embutida uma visão de mundo e de mudança desejada. Megadoações implicam megamudanças, que afetam potencialmente muitos públicos e comunidades – como ambos podem recorrer de ações polêmicas ou que gerem resultados indesejados?

Alguns argumentam que grandes gestos solidários inspiram outros a também doar. As incipientes evidências de pesquisas nos Estados Unidos e na Europa têm indicado o contrário. Na última década, doações ao setor social têm crescido em volume, mas diminuído em número de doadores (dollars up, donors down).

Algumas hipóteses podem explicar esse fenômeno. Com a crescente desigualdade de poder e de renda, enquanto poucos podem doar muito, cada vez menos gente pode doar pouco; megadoações podem causar o efeito “inspiração ao contrário”, levando as pessoas a questionarem o sentido de doar 10 ou 100 reais; e, organizacionalmente, o esforço de captar megadoações talvez concorra com o investimento em desenvolver uma ampla base de doadores.

O valor de uma doação vai muito além do recurso monetário dado. Doar é um ato político, provoca engajamento em causas e comunidades, forma cidadãos mais conscientes de seus direitos e deveres e aumenta os laços sociais de confiança. Que a chegada das megadoações ao Brasil não provoque o efeito de mais reais, menos doadores.

 

Sobre esse artigo

Fernando do Amaral Nogueira é docente da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV EAESP). Essa análise está na revista “GV Executivo” de 12 de junho.

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Publicado na Bori em 13/6/2020, 17:58 – Atualizado em 17/2/2021, 16:56