2 de maio de 2020 Foto: ALEJANDRO ESCAMILLA / UNSPLASH

Por Maria Tereza Leme Fleury

O momento atual, em que as transformações tecnológicas permitem que alguns permaneçam em casa, enquanto outros se arriscam nas ruas para servi-los, fez-me recuperar a discussão proposta por Hannah Arendt sobre trabalho e labor, em seu livro A condição humana.

Segundo Arendt, o labor é constituído das atividades básicas, objetivas, mecânicas, que visam prover a subsistência do homem, atender às suas necessidades vitais. Jamais designa o produto final, o resultado da ação. Permanece, assim, como um substantivo verbal, uma espécie de gerúndio. Por outro lado, o trabalho refere-se à produção para o mundo comum, o mundo tangível criado pelo homem, dotado de durabilidade. O trabalho produz valor a ser incorporado à esfera pública.

A distinção entre trabalho e labor faz muito sentido no seio da economia digital. Entre os países participantes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), aproximadamente 14% dos empregos correm o risco de ser substituídos pela automação nos próximos anos. De acordo com alguns estudos, as posições que desaparecerem serão substituídas por novas, embora essa previsão tenha mais chances de se concretizar em nações desenvolvidas do que em países emergentes, em função, entre outros motivos, de gaps educacionais.

As plataformas digitais e ferramentas de colaboração podem contribuir para o aumento de empregos. Pessoas e empresas são acionadas quando há demanda por produtos ou serviços; plataformas ligam fornecedores e contratantes, otimizando recursos.

Nesse cenário, algumas profissões são altamente demandadas, como é o caso dos desenvolvedores de software. Segundo projeções da revista Exame, em reportagem publicada em março deste ano, haverá no Brasil um déficit de 264 mil profissionais de tecnologia daqui a quatro anos, conforme mostram os dados da Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia da Informação (Brasscom). Esses profissionais tão disputados escolhem onde e por quanto trabalhar. O depoimento de uma das entrevistadas pela Exame me remeteu ao conceito de trabalho proposto por Arendt: “O legal dessa profissão é poder construir coisas do zero, é uma profissão de cunho quase artístico; sua ideia vira algo tangível, executável, que ajuda a vida das pessoas”.

Porém, no contraponto, cresce também a demanda pelos “uberizados”, os entregadores de aplicativos como iFood, Rappi, Uber Eats, que, com suas motos, bicicletas ou automóveis, levam compras aos isolados pela Covid-19. As discussões sobre as difíceis condições e relações de trabalho desses profissionais têm ocupado a mídia e os estudos acadêmicos. Algumas empresas têm tomado iniciativas a respeito, países e cidades estabelecem regulações específicas, mas ainda há muito o que avançar. É o labor, na acepção de Arendt, que visa à sobrevivência do ser humano.

A pandemia do coronavírus joga luz à importância das plataformas digitais e à nossa dependência do labor de entregadores. Faz-se premente olhar a regulação das condições de trabalho desses profissionais, e soa o alerta para a necessidade de o Brasil assumir mais protagonismo na inovação digital, para não ser apenas um país do labor.

Sobre esse artigo

Maria Tereza Leme Fleury é docente da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV EAESP). Essa análise está na revista “GV Executivo” de 04 de maio.

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Publicado na Bori em 2/5/2020, 16:35 – Atualizado em 17/2/2021, 16:56