10 de março de 2022 Foto: Anton_Ivanov / Shutterstock

Por Ane Alencar, Maria Rosa Murmis, Lilian Painter e Marianne Schmink

A igualdade de gênero é um dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável estabelecidos pelas Nações Unidas em 2015 para melhorar a vida das pessoas até o ano 2030. O progresso em direção aos objetivos é medido por indicadores. Lamentavelmente, os indicadores de igualdade de gênero têm avançado de forma lenta em todos os países amazônicos. A desigualdade de gênero é particularmente evidente na ciência onde o percentual de mulheres cientistas é reduzido, e elas ainda carecem de reconhecimento e apoio, sobretudo na Amazônia. Nas áreas rurais, as mulheres apresentam as menores taxas de escolaridade, alfabetização e menor acesso a empregos formais e salários mais baixos, acabando por se destacar nas atividades de cunho mais extrativistas e ligadas à natureza (ex. extração e beneficiamento de produtos florestais não-madeireiros).

Por exemplo, a representatividade feminina nos empregos ligados na atividade pecuária, o principal uso da terra na Amazônia, é mínima. No caso da mineração, outra atividade relevante na região, os empregos formais em empresas mineradoras, ou informais em áreas de garimpo, são quase exclusivamente para homens, refletindo em mudanças socioeconômicas e aumentando a violência de gênero. Madre de Dios, região localizada no meio de Amazônia Peruana, tem uma das maiores taxas de tráfico para a exploração sexual de mulheres e meninas ligadas à mineração ilegal ou informal, com 101,6 denuncias por mil habitantes em 2017.

Além disso, a desigualdade também se reflete no impacto das mudanças climáticas e desastres naturais, sendo mulheres mais propensas a sofrer reassentamento involuntário, bem como perda de acesso aos recursos naturais. Tudo isto num cenário de elevados níveis de violência baseada no gênero em toda a região e com o agravamento das desigualdades pela pandemia do COVID-19. Dados recentes mostram que 39% das mulheres na Amazônia colombiana foram vítimas de violência física. Ao mesmo tempo, mulheres têm estado na linha de frente no combate à pandemia de COVID, representando 70% dos funcionários do setor de saúde nos países amazônicos em 2019.

O futuro sustentável da Amazônia exige liderança feminina. Incentivar a formação de mulheres cientistas da Amazônia e para Amazônia, além de assegurar o acesso das mulheres à educação formal, administração pública e trabalho em geral são importantes para a formação de lideranças e a construção de propostas mais inclusivas e socioambientalmente mais harmoniosas para a região. O resultado desse processo inclusivo, favoreceria a redução da pobreza em termos de renda, atendimento das necessidades básicas, desenvolvimento de capacidades e promoção da cultura democrática.

As mulheres amazônidas, especialmente as Indígenas, são protagonistas das mais diversas atividades produtivas (como pesca, hortas comunitárias, sistemas agroflorestais) e de coleta, processamento e comercialização de produtos florestais não-madeireiros. Na Amazônia brasileira, por exemplo, as mulheres têm um papel de destaque no extrativismo da castanha, que respondeu por quase metade da exportações relacionadas à produção florestal em 2005 e forneceu cerca de 22.000 empregos. Seu trabalho produtivo, entretanto, é muitas vezes invisibilizado devido a seu foco no autoconsumo familiar. Esse trabalho invisibilizado tem sido fundamental para a segurança alimentar de muitas famílias amazônidas, reduzindo pela metade as estimativas de pobreza em populações que têm acesso a rios e florestas saudáveis na região.

As relações das mulheres com seus territórios e com a biodiversidade são muito estreitas. Em geral, elas ocupam um lugar particular nos regimes de conhecimento que se regeneram ancestralmente de mães para filhas e filhos. É hora de fomentar a ‘integração’ desse conhecimento tradicional complementar com o sistema de conhecimento formal. Reconhecer que o conhecimento tradicional é produto de observação deixa claro que as mulheres sempre fizeram ciência. Enquanto as vozes das mulheres não forem ouvidas e seu trabalho e compromisso não forem reconhecidos, esse valioso corpo de conhecimento corre o risco de ser perdido.

Na Amazônia, as mulheres representam aproximadamente metade da população e é essencial empoderá-las, e seu valioso conhecimento, trabalho e compromisso fortelecendo sua voz e organização para a gestão das florestas e rios amazônicos. As organizações de mulheres Indígenas e não Indígenas expandiram-se rapidamente desde a década de 1980. Rompendo com as tradições patriarcais, as mulheres estão se fortalecendo para lutar por seus direitos a recursos e poder e para garantir meios de subsistência sustentáveis. Para tal, elas precisam ter espaço de participação nos debates políticos, nas comunidades e nas organizações de base, além de acesso aos recursos e capacitações para apoiar suas atividades e reforçar a legislação em matéria de gênero.

A Amazônia Viva nos remete a um grande organismo, onde tudo é conectado e interdependente, diverso e balanceado. Nesse sistema, a integridade ecológica é promovida com ações de restauração e conservação (cuidados); por uma economia baseada na natureza diversificada e integrada, incluindo atividades de autoconsumo (nutrição), por estruturas de governança que são equitativas e justas (respeito). Uma visão fundamentada pelo respeito e apoio ao trabalho de mulheres, suas práticas de cuidado e nutrição, seus conhecimentos sobre a natureza e suas propostas de políticas para alcançar uma Amazônia Viva.

Sobre as Autoras

Ane Alencar é geográfa e diretora do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), Brasil. Ane tem papel pioneiro nas pesquisas de mudanças do clima, desmatamento e incêndios florestais na Amazônia e nas discussões sobre politicas publicas para redução de seus impactos.
Maria Rosa Murmis é pesquisadora associada na Universidad Andina Quito, Equador, em modelos alternativos de desenvolvimento para áreas megadiversas e trabalha como consultora em temas de mudança climática, meio ambiente e bioeconomia sustentável na cooperação multilateral em países da América Latina.
Lilian Painter é ecóloga e diretora da Wildlife Conservation Society na Bolivia. Sua experiência gira em torno da gestão territorial para a conservação na escala de paisagem.
Marianne Schmink é antropóloga e professora emérita da Universidade da Florida, EUA, onde dirigiu o programa Conservação e Desenvolvimento Tropical. Pesquisa mudanças socioambientais e relações de gênero em comunidades amazônicas.
Ane, Maria e Lilian são autoras do capítulo 25 e 26 do Relatório de Avaliação da Amazônia 2021 produzido pelo Painel Científico para a Amazônia. Marianne Schmink é autora dos capítulos 14 e 15.

Sobre o Painel Científico para a Amazônia (PCA)

O Painel Científico para a Amazônia é uma iniciativa inédita convocada pela Rede de Soluções de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas (SDSN), lançado em 2019 e inspirado no Pacto Leticia pela Amazônia. O PCA é composto por mais de 200 cientistas e pesquisadores proeminentes dos oito países amazônicos e Guiana Francesa, além de parceiros globais que apresentaram em 2021 um relatório inédito com uma abordagem abrangente, objetiva, transparente, sistemática e rigorosa do estado dos diversos ecossistemas da Amazônia e papel crítico dos Povos Indígenas e Comunidades Locais (IPLCs), pressões atuais e suas implicações para o bem-estar das populações e conservação dos ecossistemas da região e de outras partes do mundo, bem como oportunidades e opções de políticas relevantes para a conservação e desenvolvimento sustentável.

Os artigos de opinião publicados não refletem, necessariamente, a opinião da Agência Bori.

Termos de uso

Todos os artigos de opinião já publicados na área aberta da Bori (e que, portanto, não estão sob embargo) podem ser reproduzidos na íntegra pela imprensa, desde que não sofram alterações de conteúdo e que os nomes e instituições dos autores sejam mencionados.

Ao usar as informações da Bori você concorda com nossos termos de uso.

Publicado na Bori em 10/3/2022, 23:45 – Atualizado em 25/1/2023, 9:12