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Publicado na Bori em 3/11/2022, 17:12
#MinhaPesquisaNaBori

* Por Daniel Martins-De-Souza

 

Ao passo que o emprego de substâncias psicoativas na prática clínica gera acaloradas discussões, por outro lado, aguça nossa curiosidade: será que uma molécula que causa alterações em nossos estados mentais pode ser empregada para curar doenças?

Mas quando se trata de substâncias psicoativas, naturalmente um conceito “criminalizatório” navega junto. A sociedade tem, em geral, um preconceito (que só não serve para o consumo de álcool): moléculas que mudam as capacidades mentais do ser humano não devem ser usadas. Mais do que isso, seu uso é crime. A guerra às drogas promovida nos EUA nos anos de 1970 colocou todas as substâncias psicoativas dentro do mesmo balaio. Mas uma planta que tem sido usada há milênios pelo homem acirra ainda mais o debate.

Esta planta é a Cannabis sativa. A maconha. Mais propriamente, Cannabis sp, já que há diferentes espécies do gênero Cannabis. A Cannabis é uma das mais enigmáticas e debatidas plantas existentes. É de seu nome que veio o termo “canabinoide” que batiza moléculas descobertas nos anos de 1960 justamente na maconha, sendo o tetrahidrocanabinol (THC) e o canabidiol (CBD) as principais delas. Algumas décadas mais tarde, descobriu-se que temos, em nosso organismo, um sistema de neurotransmissão, cujos produtos são justamente canabinóides! Em 1988, foi descoberto um receptor para canabinoides no corpo humano e, nos anos de 1990, canabinoides produzidos em nosso próprio cérebro. O chamado “sistema endocanabinoide” é capaz de reconhecer não somente os ENDOcanabinoides (produzidos por nosso corpo), mas também os FITOcanabinoides, produzidos por plantas. E isso explica o porquê a maconha é um psicotrópico.

Todo este contexto – o debate social e a fascinação científica – promovem estudos, como o que conduzimos em nosso laboratório, liderado pela Dra. Valéria de Almeida com financiamento da FAPESP, e que foi disseminado para a imprensa pela Agência Bori. O estudo, publicado na revista “European Archives of Psichiatry and Clinical Neurosciences” em 27 de maio de 2022,  teve mais de 60 repercussões na imprensa e foi pauta de veículos como Agência Brasil, Metrópoles e Scientific American Brasil – o que demonstra o interesse da imprensa pelo papel dos canabinoides no tratamento de doenças como esclerose múltipla e esquizofrenia.

Nós empregamos endocanabinoides, fitocanabinoides e canabinoides sintetizados em laboratório para entender sua importância numa célula específica do cérebro, os oligodendrócitos. Estas células de nome complicado são responsáveis pela produção da bainha de mielina, que funciona como um isolante natural. Imaginem que quando os neurônios conversam, parte desta conversa é feita por impulsos elétricos. Para uma melhor condução destes impulsos, o ambiente por onde eles passam, precisa estar encapado, como um fio elétrico. Pois bem, a bainha de mielina é como um “encapamento” para os “fios” do cérebro. E em algumas doenças do cérebro, como a esclerose múltipla e até a esquizofrenia, sabe-se que este encapamento está comprometido. Vimos in vitro (em células cultivadas em laboratório), que os canabinoides têm efeitos significativos nos oligodendrócitos, propondo que estas células são importantes alvos terapêuticos para tratamentos que venham a ser desenvolvidos. Mais do que isso, traz a perspectiva que os próprios canabinoides podem ser usados para este fim.

Ao passo que é notável a importância dos canabinoides – incluindo os fitocanabinoides – no cérebro, isso não é sinônimo do consumo de maconha para curar doenças. A investigação dos compostos isolados da maconha é o que tem sido feito por cientistas sérios no mundo todo e pode indicar importantes e pertinentes caminhos para uma saúde cerebral e mental, mais do que necessária neste século.

 

* Coordenador do Laboratório de Neuroproteômica da Universidade Estadual de Campinas e do Projeto Temático “Da compreensão básica a biomarcadores clínicos para a esquizofrenia: um estudo multidisciplinar centrado na neuroproteômica”, cujos estudos são antecipados à imprensa pela Bori.